24/05/2022

Por Marcelo Godoy, repórter especial – “Houve um tempo em que os militares mandavam no País e celebravam seus feitos com a música Eu Te Amo Meu Brasil. O velho hit dos Incríveis soou novamente em uma solenidade em Brasília, executado pela fanfarra do Regimento de Cavalaria de Guardas. Era dia 19 de maio. Os Institutos Villas Bôas, Sagres e Federalista apresentaram o seu Projeto de Nação, O Brasil em 2035 em evento que contou com a presença do vice-presidente Hamilton Mourão.

Sob a ideia de “entregar um Brasil melhor aos nossos filhos e netos”, os militares e civis envolvidos no trabalho desenvolveram um documento com 93 páginas. O projeto foi coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), a ONG do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Rocha Paiva disse que o estudo é “apartidário, aberto e flexível”. Ele traça um cenário no qual se projeta o domínio do bolsonarismo no Brasil até 2035.

O general diz que o estudo está à disposição de todos – Mourão e um representante do governo estiveram na solenidade e receberam um exemplar. “Mesmo que haja mudança de governo. Claro que se for de direita para esquerda, vai jogar fora.” O documento aborda 37 temas estratégicos. Trata de geopolítica, governança nacional, desenvolvimento, ciência, tecnologia, educação, saúde, defesa nacional e segurança. A Amazônia é citada dentro do tema Defesa Nacional, no capítulo Integração da Amazônia no Brasil.

O projeto diz que a Nação está ameaçada pelo “globalismo”. Diz o documento: “O chamado globalismo, movimento internacionalista cujo objetivo é determinar, dirigir e controlar as relações entre as nações e entre os próprios cidadãos, por meio de posições, atitudes, intervenções e imposições de caráter autoritário, porém disfarçados como socialmente corretos e necessários. No centro desse movimento está a elite financeira mundial, ator não estatal constituído por megainvestidores, bancos, conglomerados transnacionais e outros representantes do ultracapitalismo, com extraordinários recursos financeiros e econômicos”.

Para Eduardo Villas Bôas, Mourão, Rocha Paiva e associados, o globalismo tem aliados poderosos no Brasil. Afirma o documento: “O globalismo tem outra face, mais sofisticada, que pode ser caracterizada como ‘o ativismo judicial político-partidário’, onde parcela do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública atuam sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição brasileira.” A ideologia da extrema direita está em outros trechos do projeto.

O documento prevê que a classe média deve pagar mensalidades nas universidades públicas e pelo atendimento no SUS. A cobrança deve começar em 2025. “Além disso, a partir de 2025, o Poder Público passa a cobrar indenizações pelos serviços prestados, exclusivamente das pessoas cuja renda familiar fosse maior do que três salários mínimos.” Mourão e os seus amigos para sempre – outra música da cerimônia – pretendem acabar com a Saúde gratuita e universal num segundo mandato de Bolsonaro.

Na Educação, o grupo demonstra ainda o desejo de limitar o debate acadêmico e a liberdade de cátedra, garantidos pela Constituição, impondo sua visão de mundo a estudantes e professores. O projeto traça o seguinte cenário para 2035: “Os currículos foram ‘desideologizados’ e hoje são constituídos por avançados conteúdos teóricos e práticos, inclusive no campo social, reforçando valores morais, éticos e cívicos e contribuindo para o progressivo surgimento de lideranças positivas e transformadoras”.

Para Mourão e Villas Bôas, tudo estará mudado em 2035. Diz o documento: “No ensino universitário, inclusive no Superior Tecnológico, os debates políticos e ideológicos se tornaram equilibrados, com abertura para diferentes correntes de pensamento”. Como fazer isso sem violar a autonomia universitária, a liberdade de cátedra e a liberdade de pensamento é o que mais uma vez não se esclarece. E quem pedir explicações corre o risco de ser acusado de comunista ou de ofender as Forças Armadas.

Toda vez que confrontados com seus atos, os militares que embarcaram no governo de Jair Bolsonaro reagem se escondendo atrás do biombo das Forças Armadas. Tentam fazer com que o suposto agravo individual se torne ofensa coletiva. E, assim, deixam de prestar contas pelo que fazem como se agissem em nome de seus pares. Sem serem julgados, fazem avançar uma amnésia moral. Hannah Arendt tratou dessa falácia em Responsabilidade e Julgamento com a fórmula hoje clássica: “Quando todos são culpados, ninguém o é”.

Estadão; 23/05
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