30/01/2023
Especialistas analisam o fenômeno que vem levando grande parte da população a aderir a uma realidade paralela – Por Laura Greenhalgh

“Não é exagero afirmar que o Brasil se tornou laboratório de realidade paralela”, propõe de saída o historiador e cientista político João Cezar de Castro Rocha, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e autor, entre outros títulos, de “Guerra cultural e retórica do ódio” (Caminhos).  “É fácil verificar isso: hoje todos temos ao menos um parente ou amigo próximo que se enredou na trama bolsonarista. Foram quatro anos de uma dieta brava de desinformação, a ponto das pessoas passarem a acreditar só no que lhes era oferecido, descolando-se da realidade.”

Embora circulem estimativas imprecisas sobre o número dos apoiadores mais exaltados de Jair Bolsonaro, projetadas a partir da presença de manifestantes em portas de quartéis, em bloqueios de estrada e pelo país – diz-se algo em torno de 100 mil -, Castro Rocha acredita que este segmento pode ser bem maior, considerando-se o universo de 58  milhões de votos recebidos pelo ex-presidente na campanha de 2022. “Falo daqueles com os quais não há chance de diálogo. Se divido uma mesa de restaurante com outras pessoas e uma delas diz que Bolsonaro fez bem ao país, peço uma garrafa de vinho e duas taças. Vamos conversar. Mas, se esta pessoa afirma que o coronel Brilhante Ustra, um torturador condenado, foi um herói nacional, daí pago a conta e vou embora. Farei o mesmo se a pessoa cravar que mulheres devem ganhar menos do que os homens ou que negros são seres inferiores. São situações em que conversar é perder tempo.”

Esta simulação de casos tem a ver com a linha de pesquisa do professor nestes tempos bicudos. Recuperando uma teoria dos anos 1950, a “dissonância cognitiva”, desenvolvida pelo psicólogo americano Leon Festinger (1919-1989), Castro Rocha procura entender os mecanismos associados ao modo como um indivíduo lida com dados da realidade. Festinger  demonstrou que faz parte da condição humana uma certa dissonância entre “o que eu creio” e “o que eu faço”. Conhecido exemplo é o do médico pneumologista que fuma. Sabe que faz mal, mas não abre mão dos seus charutos.

São múltiplos os caminhos de interpretação da realidade paralela. Maria Beatriz Vannuchi não perde de vista a “sensação de pertencimento” ao grupo, que transforma desencanto em aventura, sofrimento em gozo. Chama ainda a atenção para o quadro epidêmico de problemas de saúde mental no Brasil, algo que precisa ser cuidado com urgência. Christian  Dunker segue atrás dos mecanismos que levam ao refúgio de uma “realidade encantada”, ainda que temerária. Castro Rocha continuará pesquisando a midioesfera extremista. Coutinho se volta para a capacidade de as políticas democráticas disciplinarem a violência. Rose Marie Santini finaliza um relatório sobre quatro anos de ataques à democracia no  Brasil. Quanto a Rudá Ricci, continuará com a sua escuta social, quem sabe encontrando as vertentes de uma pedagogia dos ressentidos: “Não é suficiente dizer que o Brasil voltou. Na verdade, o Brasil mudou”.

Valor Econômico, 27/01
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