05/10/2021
“Olha aqui, vocês são amigues dele?”, pergunta a atriz Elizabeth Savalla a um grupo de drag queens que convivem com Marcos Caruso na novela “Pega Pega”, de 2017, reexibida agora pela TV Globo, depois de socorrer o amigo de um tombo e o levar à boate gay em Copacabana da qual ele é dono.Savalla hesita antes de fazer a pergunta, interpretando um tom de estranhamento que serve para pontuar que não sabe se está usando bem a linguagem neutra, uma variação linguística que não faz parte do dia a dia de sua personagem, Arlete, uma mulher cisgênero heterossexual.

Nas ruas, é raro ouvir na boca do povo “amigues” e qualquer outro substantivo ou adjetivo neutros para representar pessoas não binárias, ou seja, que não se identificam com o gênero masculino ou feminino. Mais raro ainda é ouvir pronomes neutros, como “ile” e “dile” ou “elu” e “delu”.

Mas a cena protagonizada por Savalla, que se repete algumas vezes ao longo do folhetim, evidencia um ponto de partida na indústria do entretenimento que agora vai se consolidando. Se antes o uso do gênero neutro era restrito às redes sociais, principalmente entre ativistas transgênero, ao longo dos últimos anos ele vem se espalhando pelos pilares da cultura pop.

Professora da Universidade Federal de Sergipe e vice-presidente da Associação Brasileira de Linguística, Raquel Freitag reconhece a necessidade de uma forma inclusiva em relação às pessoas não binárias, mas é crítica à neutralização do gênero, ou seja, à troca do “o” pelo “e” como genérico, porque isso apagaria o gênero feminino.

Freitag também acredita que a mudança pode esbarrar na dificuldade encontrada para a construção de frases inteiramente neutras, ou seja, que não usem só substantivos ou adjetivos, mas também pronomes e artigos. É a mesma dificuldade encontrada pelas editoras.

“Não tem como prever o que vai acontecer na língua, porque ela é sensível à dinâmica social, mas a linguagem não binária está rompendo a bolha do círculo onde foi criada”, diz. “Uma forma linguística emerge para atender demandas comunicativas de um grupo e, quando ganha aceitação entre os outros, está em vias de regularização. Mas nada na língua é rápido. São décadas e décadas para uma mudança como essa vingar.”

 

Folha de São Paulo; 01/10
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